A próxima Cúpula do Mercosul em Ouro Preto coincidirá
com a passagem do décimo aniversário da aprovação
da tarifa externa comum. Junto com a total eliminação de
tarifas e restrições não-tarifárias ao comércio
recíproco, a tarifa externa foi concebida como um dos instrumentos
medulares do Tratado de Assunção e é um passo prévio
à etapa mais vigorosa de construção de um mercado
comum.
Uma das premissas explicitadas na negociação destes instrumentos
medulares era o avanço na coordenação macroeconômica
e na integração setorial. Nestes 10 anos não se logrou
avançar em nenhum dos dois casos. Tampouco houve avanço
no desenvolvimento dos outros elementos do mercado comum, conforme sua
definição no artigo 1° do pacto constitutivo. Seria
então válido considerar que, em boa medida, este pacto constitutivo
plasmado no Tratado de Assunção foi superado pela realidade.
Também completou 10 anos o Protocolo de Ouro Preto que estabeleceu
uma estrutura institucional com órgãos, processos de criação
normativa e efeitos jurídicos das regras aprovadas por consenso.
Esta estrutura evoluiu recentemente com a Presidência do Comitê
de Representantes Permanentes e a Secretaria Técnica. A idéia
subjacente seria, ao que se sabe, que esses dois órgãos
se incorporassem a uma nova versão de tal Protocolo que seria conhecido
como Ouro Preto II.
Perspectivas para avaliar a experiência acumulada
A experiência acumulada com o Mercosul desde a sua criação
inclusive desde o desenvolvimento a partir de 1985 da etapa bilateral
do processo de integração entre a Argentina e o Brasil ,
e especialmente nestes 10 anos de vigência da tarifa externa comum,
pode ser apreciada em pelo menos três perspectivas complementares.
A primeira é a política. Está relacionada com a
marca das relações estabelecidas por quatro países
que são vizinhos e, nas duas últimas décadas, fortaleceram
suas conexões em todos os planos. Trata-se de relações
hoje dominadas pela lógica da integração diante de
fatos comuns na História de países vizinhos em todo o mundo,
ou seja, o predomínio da lógica da fragmentação
e, em última instância, da lógica do domínio
hegemônico, com, inclusive, a absorção por um deles.
Isso ocorreu com maior freqüência nos subsistemas internacionais
marcados por profundas assimetrias de poder e dimensão econômica
entre os vizinhos.
A verdade é que, extrapolando as tensões ocasionais e os
naturais conflitos comerciais, consolidouse entre os sócios do
Mercosul e entre estes e seus principais associados, o Chile e a Bolívia,
a idéia de um bairro que aspira a revestir-se de qualidade,
com confiança recíproca e boas maneiras.
Trata-se da noção de uma zona de paz cujo valor internacional
cresce na medida em que se possa concebê-la como um núcleo
sólido da estabilidade política sul-americana. É
um bem público que deve ser preservado e cultivado mediante o exercício
sutil de uma diplomacia de integração não
só governamental mas também dos atores sociais e
a tecedura perseverante de uma forte rede de conectividade em todos os
planos, e não apenas no econômico e comercial, posto que
a História universal, além de muitas experiências
contemporâneas, assinala que costuma ser mais fácil retroceder
do que avançar no que respeita à orientação
e à qualidade das relações entre países vizinhos.
Até que ponto um eventual colapso do Mercosul ou o seu declínio
para um plano de acentuada irrelevância econômica teria o
efeito de deteriorar este resultado político é uma questão
que merece a reflexão de todos os que apreciam a inserção
de cada um de nossos países em um subsistema regional dominado
pela lógica da integração e não pela da fragmentação,
ou seja, por aqueles que valorizam a inserção em um bairro
de qualidade.
A segunda perspectiva para uma avaliação do Mercosul é
a do intercâmbio comercial. Esta guarda relação primordialmente
com os fluxos de comércio de bens entre os sócios. Neste
plano têm-se observado, nos anos de experiência acumulada,
Os conflitos no Mercosul desnorteiam a opinião pública,
que recebe mensagens contraditórias entre uma aliança épica,
cheia de virtudes, e as disputas hoje por geladeiras, ontem por têxteis
e calçados, amanhã por automóveis e autopeças
flutuações que podem ser explicadas fundamentalmente por
disparidades no comportamento das respectivas economias especialmente
as do Brasil e da Argentina e, às vezes, também por
fortes disparidades cambiais.
Até que ponto o comércio recíproco e suas flutuações
nos últimos anos podem dever-se à existência do Mercosul
e de suas regras de jogo e em que medida são o resultado natural
da contigüidade geográfica de economias que na década
de noventa se abriram para o mundo e não apenas para a região?
Esta é uma pergunta que ainda precisa ser respondida com precisão
e evidência empírica, a fim de permitir o esclarecimento
de efeitos comerciais negativos e positivos que costumam ser atribuídos
ao Mercosul.
A terceira perspectiva é a do investimento produtivo. Esta é
provavelmente a mais importante, do ponto de vista político e não
só econômico. Significa visualizar o Mercosul como um instrumento
de transformação produtiva de cada país membro e,
conseqüentemente, de incorporação de progresso técnico
e geração de emprego qualificado. Tem a ver com a capacidade
de competição em escala global e não apenas regional.
É o que dá sentido, aos olhos de seus cidadãos, à
idéia que tanto se difundiu nos momentos basilares de abertura
para todos do acesso a um mercado de mais de duzentos milhões de
consumidores.
É nesta última perspectiva que o Mercosul, após
10 anos de uma união aduaneira ainda incompleta, suscita mais perguntas
do que respostas ao empresariado, sobretudo de pequeno ou médio
porte, que avalia a conveniência de investir em função
do espaço econômico prometido. São perguntas estimuladas
por uma vivência de regras precárias, um debate existencial
contínuo sobre a conveniência do Mercosul e suas modalidades
zona de livre comércio ou união aduaneira? ,
um campo de jogo desnivelado e pouca transparência dos mecanismos
de negociação.
Na visão de um investidor potencial, nacional ou estrangeiro,
são três as perguntas fundamentais que esperam respostas
claras dos países membros. Todas elas se referem ao potencial do
Mercosul como processo formal de integração orientado para
a constituição de um genuíno incentivo institucional
e econômico ao investimento produtivo.
São estas as perguntas: Os sócios principalmente
os dois de maior dimensão econômica estão dispostos
a acatar disciplinas coletivas que restrinjam sua liberdade para aplicar
discricionariamente políticas públicas em matéria
de desenvolvimento econômico, comércio exterior e investimento
produtivo?
Em que consiste a preferência econômica entre os sócios
e em que ela consistirá caso se concluam as negociações
com a União Européia e com os Estados Unidos quer
no contexto da chamada Alca ou eventualmente em um formato 4+1 ,
ou ainda, em outras palavras, que vantagens econômicas derivadas
do privilégio de ser um membro pleno diferem das concedidas a países
com os quais Mercosul se associa mediante acordos preferenciais nos âmbitos
latino-americano, hemisférico, bi-regional ou global?
Como se garante o respeito à preferência econômica
pactuada entre os sócios? Quem investe, por exemplo, no Uruguai
ou no Paraguai, em função do espaço integrado, goza
das mesmas garantias de acesso aos mercados dos demais sócios
especialmente da Argentina e do Brasil que tem hoje quem investe
na Lituânia ou na Eslovênia em função do mercado da União
Européia?
Em dezembro próximo, muitos empresários sobretudo
de pequeno e médio porte e seus empregados procurarão
nos resultados da Cúpula de Ouro Preto pelo menos um começo
de resposta a estas perguntas. Vão procurar tais respostas na adoção
de compromissos exigíveis que não possam ser facilmente
deixados de lado. Conforme as respostas, os empresários vão
se inclinar ou não a levar a sério o Mercosul, ou seja, a investir em função
do mercado ampliado.
Questões relevantes para um Mercosul com futuro
Desde a origem do processo de integração, as relações
entre a Argentina e o Brasil têm sido um fator fundamental para
sua vitalidade e credibilidade. No momento, pelo menos duas tendências
parecem coexistir nestas relações no tocante ao Mercosul.
Por um lado, observa-se a persistência de uma clara vontade política
de continuar construindo o espaço de integração econômica
como parte das estratégias mais amplas de inserção
de cada país no mundo e na região sul-americana. Os Presidentes
Kirchner e Lula assim o manifestaram reiteradas vezes.
Por outro lado, são notórias as dificuldades metodológicas
surgidas nos últimos anos no desenvolvimento do processo de integração.
A nosso ver, as deficiências metodológicas são sentidas
principalmente na capacidade institucional para administrar desajustes
transitórios ou estruturais que geram conflitos comerciais entre
os sócios e para produzir regras de jogo que, ao mesmo tempo que
refletem os interesses nacionais dos países membros no pressuposto
de que estejam corretamente definidos , tenham um forte potencial
de penetração na realidade, isto é, de cumprimento
(critério de efetividade das regras) e de consecução
portanto dos objetivos que com elas se procura alcançar (critério
de eficácia).
Tais regras são essenciais para fazer avançar a construção
gradual do Mercosul e, em particular, para efetuar as adaptações
exigidas pelas contínuas mudanças na realidade externa e
interna dos países membros. Sua efetividade e eficácia são,
por outro lado, fundamentais para a aceitação social dos
compromissos assumidos, pelo fato de serem percebidas como geradoras de
um quadro de proveito mútuo para os sócios (critério
de legitimidade social).
O certo é que os recentes conflitos comerciais entre as duas principais
economias da área evidenciaram, mais uma vez, que o Mercosul os
maneja mal. Poder-se-ia dizer que ele tem um mau aparelho digestivo.
À semelhança do que ocorreu outras vezes, neste caso também
foram geradas tensões de forte impacto social, as quais eram, inclusive,
desproporcionais à magnitude dos fluxos de comércio envolvidos.
Tais conflitos desnorteiam a opinião pública, que recebe
mensagens contraditórias entre uma aliança épica,
cheia de virtudes e as disputas, hoje por geladeiras, ontem por têxteis
e calçados, amanhã por automóveis e autopeças.
O aspecto favorável é que as diferenças logo se
diluem e deixam de ser notícia. O desfavorável é
que elas contribuem para uma erosão paulatina da imagem do Mercosul
e aprofundam sua perda de credibilidade. E será ainda pior se os
sócios não tiverem e nenhum parece ter um
plano B sustentável, isto é, um plano viável
de inserção econômica internacional que por sua vez
contribua para a consolidação de uma região sul-americana
dominada pela lógica da integração e, portanto, pela
paz e pela estabilidade política no contexto do predomínio
da legitimidade democrática em cada um dos países que a
conformam.
Convém então que haja uma discussão serena e um
diagnóstico preciso. O que vai mal no Mercosul? A idéia
estratégica ou a forma de implementá-la?
Não obstante as afirmações contundentes feitas no
calor do debate público como a de que o Mercosul fracassou
e outras semelhantes , não se observa em nenhum dos sócios
uma posição firme em relação ao abandono da
idéia que o Mercosul encarna. Conforme antes se assinalou, pelo
menos nos atuais governos tal hipótese está descartada.
Ela tampouco cala fundo na opinião pública. Isso talvez
ocorra porque todos temos consciência do sabor amargo que teria
um fracasso, bem como do descrédito internacional e de suas conseqüências
no complicado cenário sul-americano. Mas se o reconhecimento de
tal fracasso se tornasse indispensável, dificilmente se deixaria
de logo criar algo parecido com o Mercosul. E alguém acreditaria
nele?
Apesar das aparências, o debate não parece ser de natureza
existencial. Estaria mais centrado em como levar a cabo o trabalho conjunto
entre os sócios, isto é, no aspecto metodológico.
Seu eixo passa por uma questão central em um processo de integração
voluntária entre nações vizinhas e de poder relativo
desigual: como distribuir os custos e benefícios ou, em outros
termos, como resolver a questão de quem ganha e quem perde.
O equacionamento desta questão é simples de definir e difícil
de pôr em prática. Trata-se, certamente, de que todos percebam
que ganham mais estando dentro do clube do que fora dele. Mas o problema
no Mercosul é que, dadas as assimetrias de tamanho, as competitividades
relativas, as situações macroeconômicas conjunturais,
há recorrentemente aqueles que percebem, ou acreditam perceber,
que são perdedores sistemáticos. Pode se tratar de países
o caso do Paraguai ou do Uruguai ou de setores industriais
ou agrícolas sensíveis de qualquer dos sócios.
Costuma-se afirmar que a solução estaria no retrocesso
do Mercosul para uma zona de livre comércio. Esta solução,
em teoria, seria cabível. Na prática, suscita enormes problemas.
Não há zona de livre comércio moderna sem regras
de origem específicas. As zonas de comércio conhecidas e
que proliferaram nos últimos anos na região e em outras
partes deixam claro que é com regras de origem específicas
que se faz a discriminação entre sócios e não-sócios.
Cabe a respeito formular esta pergunta: Seria fácil negociar regras
de origem específicas dentro de um clima de insucesso do processo
em curso no Mercosul? E por acaso os problemas recorrentes observados
nos últimos anos não têm origem precisamente no comércio
intra-Mercosul de bens e serviços, devido em boa parte à
impossibilidade de concretizar as premissas acima referidas coordenação
macroeconômica e integração produtiva setorial
explicitadas quando da negociação do Tratado de Assunção?
Acredito que a abordagem profunda do debate metodológico é
inadiável. Convém baseá-lo em um diagnóstico
dos problemas sensíveis, realizá-lo por meio de um diálogo
franco e da negociação e colocá-lo na perspectiva
de um salto à frente. Não se trata de um salto para um vazio
cheio de ilusões, de uma nova quimera, mas, antes, de um salto
no sentido de regras com mais qualidade e realismo do que as atuais.
O debate metodológico há de exigir muita liderança
política e criatividade técnica. Pelo fato de o Brasil ser
o país de maior dimensão econômica e exercer no semestre
corrente a presidência pro-tempore do Mercosul, cabe-lhe importante
responsabilidade.
Neste contexto, é importante destacar que se observa uma atitude
cada vez mais cética de parte de empresários e economistas
brasileiros em relação ao Mercosul. Numerosos artigos de
especialistas e editoriais dos principais jornais a põem em evidência.
Do ponto de vista da estratégia negociadora dos demais sócios,
porém com destaque para o da Argentina, convém que se procure
entender a perspectiva predominante no Brasil em relação
ao Mercosul, tal como exteriorizada na imprensa do país, pelo menos.
Citam-se a seguir alguns elementos do diagnóstico que prevaleceriam
em setores brasileiros relevantes, especialmente naqueles que poderiam
ser considerados como os mais céticos acerca do Mercosul:
- Os conflitos comerciais do Mercosul devem-se fundamentalmente a deficiências
estruturais que afetam a competitividade relativa de setores industriais
da Argentina; seriam uma conseqüência das próprias
políticas econômicas aplicadas nos últimos anos
e da falta de resposta do empresariado às oportunidades abertas
tanto no mercado brasileiro como, ainda, no dos demais sócios
e do Chile.
- O fato de a balança comercial bilateral ser agora deficitária
para a Argentina e de a tendência ser de ampliação
da brecha é que estaria levando o Governo argentino a aplicar
medidas protecionistas, violando inclusive as regras pactuadas; caberia
esperar mais protecionismo no futuro.
- A Argentina não estaria, pelo menos no curto prazo, em condições
de superar as deficiências de competitividade relativa observadas
em vários de seus setores industriais.
- O mercado argentino é mais atraente agora do que há
dois anos, porém teria perdido importância relativa comparativamente
com outros mercados de exportação para os setores industriais
brasileiros, inclusive no setor automotriz.
- No pior dos cenários, na Argentina os produtos de origem brasileira
só poderiam perder a preferência comercial resultante do
Mercosul; jamais receberiam um tratamento mais restritivo do que o aplicado
a terceiros países; em muitos casos os produtos brasileiros poderiam
competir no mercado argentino, mesmo sem a preferência comercial;
dificilmente haveria um cenário em que a Argentina aumentaria
drasticamente suas restrições às importações
de todas as origens, exceto no caso de alguns setores muito sensíveis.
- Nas condições atuais, seria difícil para a Argentina
admitir a idéia de uma integração econômica
mais profunda com o Brasil, isto é, de avançar na linha
de um mercado único.
- A capacidade do Brasil de lançar uma âncora à
Argentina em matéria de investimentos diretos e de financiamento
de investimentos industriais é relativamente limitada.
- Todavia, preservar o Mercosul é para o Brasil um objetivo valioso
de sua política externa particularmente útil às
suas negociações comerciais internacionais, dado o efeito
de legitimidade social de um eventual acordo de livre comércio
com os Estados Unidos. Mas, acima de tudo, é primordial para
o Brasil cooperar para que a Argentina possa finalmente superar suas
atuais dificuldades.
- Em síntese: o Mercosul e a Argentina teriam hoje um valor relativo
para o desenvolvimento econômico do Brasil inclusive para
a estratégia de inserção internacional de suas
empresas menor do que o que tinham no começo do processo;
trata-se de um mercado em que as empresas brasileiras poderiam competir
mesmo sem preferências comerciais; o maior interesse em preservar
o Mercosul é dos responsáveis pela estratégia internacional
e pela política externa brasileira, em particular, no que respeita
ao espaço sul-americano, às relações com
os Estados Unidos e às negociações comerciais internacionais
(embora hoje menos do que antes).
No momento, isto é, neste segundo semestre de 2004, conviria aparentemente
focalizar a agenda negociadora em relação ao Mercosul em
pouquíssimas questões centrais. Isso, porém, sem
prejuízo das ações que forem desenvolvidas no espaço
sul-americano mais amplo, especialmente em matéria de livre comercio
com a Comunidade Andina de Nações, de integração
energética e de infra-estrutura física. As questões
centrais de uma agenda de ação imediata do Mercosul poderiam
envolver principalmente o seguinte:
- O estabelecimento de algum tipo de mecanismo de flexibilização
pautada e temporária das regras de jogo aplicáveis ao
comércio intra- Mercosul. Uma hipótese máxima seria
o restabelecimento de cláusulas de salvaguarda mediante uma Decisão
do Conselho do Mercosul. Conviria evitar que lhes fosse dado um caráter
de relativa automaticidade, inclusive para prevenir uma avalanche de
demandas por parte de setores industriais. Poder-se-ia atribuir um papel
à Secretaria do Mercosul na análise técnica da
situação concreta que requeresse flexibilização
temporária. Uma hipótese mínima compreenderia a
obrigação de consulta entre os sócios e a liberação
das medidas concretas acordadas entre os governos, com a participação
dos respectivos setores empresariais. Precedentes a serem levados em
conta na elaboração de regras de jogo do Mercosul na matéria
poderiam ser os mecanismos ao estilo do artigo 22 do Acordo de Complementação
Econômica 14 (1) e dos artigos 26, segundo parágrafo, e
107 do velho Tratado de Roma. (2) Haveria a vantagem de eliminar-se
o argumento que o Governo brasileiro tem invocado toda vez que assinala
que um acordo voluntário de restrição de exportações
seria vulnerável à luz de sua legislação
de defesa da concorrência. Uma norma do Mercosul permitiria dar
cobertura jurídica a tais restrições voluntárias
e facilitaria um controle eficaz por parte dos governos.
- A atribuição de grande ênfase e prioridade política
a acordos formais orientados para a integração de cadeias
de valor, seja no contexto dos atuais foros de competitividade, seja
utilizando a Decisão CM 3/91 que continua vigente ou gerando
um novo marco normativo. A criação de facilidades financeiras
para projetos desenvolvidos em virtude de acordos de integração
produtiva poderia ser inclusive uma das resultantes da cooperação
econômica que finalmente derivasse da associação
bi-regional com a União Européia.
- O enfrentamento da questão da tarifa externa comum utilizando
toda a flexibilidade que o artigo XXIV-8 do Gatt-1994 admite.
- A aprovação de programas de integração
solidária em relação ao Paraguai e ao Uruguai que
signifique o reconhecimento de um Mercosul de geometria variável
e múltiplas velocidades, no que concerne tanto ao comércio
intra-Mercosul como ao AEC.
- A elaboração de um código de conduta em matéria
de incentivos ao investimento e ao comércio intra-Mercosul segundo
as linhas, por exemplo, do disposto a respeito dos investimentos no
acordo de comércio interno do Canadá, de 1994. (3)
Estas e outras questões relacionadas com o funcionamento das instituições
do Mercosul deveriam ser parte necessária de um vigoroso debate
entre os países membros e dentro de cada um deles acerca do futuro
de um processo de integração regional concebido como funcional
para a transformação produtiva conjunta e a inserção
competitiva na economia global. A participação dos empresários
e demais setores da sociedade civil, no âmbito especialmente de
foros conjuntos do Mercosul, contribuiria para que tal debate refletisse
os interesses às vezes diversos de todos os protagonistas relevantes
de cada país membro. A recente criação da Coalizão
Empresarial Argentina-Brasil poderia propiciar um espaço adequado
para a análise e articulação de consensos em torno
de novas modalidades operacionais do Mercosul, sem prejuízo da
participação prevista de empresários dos outros dois
sócios e, eventualmente, também dos países associados.
Transparência: qualidade valiosa porém escassa no Mercosul?
A questão da transparência em seus processos de decisão
requer hoje uma atenção especial no debate sobre o futuro
do Mercosul.
De fato, a transparência é uma qualidade propagada nos últimos
anos nas negociações comerciais internacionais. Um espaço
de negociação que não seja transparente passa a ser
visto como antiquado e próprio de um mundo que se acabou. Estes
dois fatores, pelo menos, estimularam tal mudança: a internet e
as demandas da sociedade civil e de suas organizações. Eles
se potencializam mutuamente e parecem irreversíveis.
As páginas virtuais de organismos internacionais e de governos
permitem cada vez mais o acesso em tempo real a informações
relevantes para o entendimento do que está sendo negociado e da
posição oficial dos negociadores. Poder-se-ia inclusive
afirmar que a qualidade de um organismo ou de uma repartição
pública à semelhança da que caracteriza as
empresas e demais instituições transparece na sua
página web.
Quando existe transparência o que nem sempre é o
caso há benefícios políticos (facilitam-se
a participação de setores interessados e a construção
da necessária legitimidade social), econômicos (permite-se
às empresas traçar tempestivamente suas estratégias
de adaptação a novas condições de concorrência
econômica) e culturais (demonstram-se as virtudes da aliança
implícita entre a idéia de uma sociedade aberta e as tecnologias
da informação).
No que respeita à transparência, o Mercosul ainda não
transpôs toda a linha divisória entre antiguidade e modernidade.
Qualquer usuário da internet poderá falar do quanto é
difícil obter informações atualizadas sobre o que
nele se negocia. Os textos das propostas de novas regras sobre temas relevantes
somente são conhecidos depois de aprovados. Isso afeta inclusive
a eficácia de mecanismos como o Foro Consultivo Econômico
e Social. A palavra reservado é de uso comum nos anexos
às pautas de reuniões técnicas e mesmo quando se
trata do Grupo Mercado Comum e da Comissão de Comércio.
O relatório semestral da Secretaria Técnica um excelente
diagnóstico do estado atual do Mercosul e dos problemas por ele
enfrentados saiu de sua página web depois de haver sido
divulgado. Uma boa notícia publicada quaisquer que sejam
as razões que a expliquem foi a da oferta que o Mercosul
encaminhou à União Européia. Melhor notícia
ainda teria sido a de que o projeto de acordo com todos os seus componentes
também estava na internet.
É difícil dissociar a transparência das idéias
de mudança e de progresso. Extrapolando idades e ideologias, a
transparência permite distinguir os negociadores que valorizam a
opinião de seus cidadãos daqueles que, mesmo sem disso se
darem conta, não o fazem.
Para melhorar a qualidade institucional do Mercosul objetivo de
claro sentido político e econômico caso se pretenda aumentar
sua credibilidade junto aos cidadãos, aos investidores e a terceiros
países , a consecução de níveis razoáveis
de transparência nos processos de elaboração de regras
de jogo é um dos desafios que precisa ser encarado com determinação
pelos países membros. O encontro de Ouro Preto, em dezembro, dá
oportunidade para passos concretos também neste plano.
(1) O texto do ACE 14 entre a Argentina e o Brasil pode ser consultado
em www.aladi.org.uy.
Seu artigo 22 assim estabelece: Ambos os países procurarão
promover o aproveitamento equilibrado e harmônico dos benefícios
do presente Acordo e adotarão, para tal fim, através do
Grupo Mercado Comum Argentina-Brasil, as medidas pertinentes para a correção
de eventuais desequilíbrios no aproveitamento desses benefícios
e para a expansão do intercâmbio, visando a assegurar condições
eqüitativas de mercado, o máximo aproveitamento dos fatores
de produção, o incremento da complementação
econômica, o desenvolvimento equilibrado e harmônico dos dois
países e a inserção competitiva de seus produtos
no mercado internacional.
(2) O artigo 26, segundo parágrafo, do Tratado de Roma de 1957
dispõe o seguinte: A autorização só
pode ser concedida por um período limitado e unicamente para um
conjunto de posições pautais que não representam
para o Estado em causa mais de 5% do valor das suas importações
provenientes de países terceiros e efetuadas durante o último
ano de que existam dados estatísticos (o grifo é nosso).
Esta disposição refere-se ao previsto no parágrafo
primeiro no sentido de que é facultado à Comissão
autorizar um Estado membro que estiver enfrentando dificuldades particulares
a diferir a modificação de certas posições
tarifárias. Por sua vez, o artigo 107, além de prever que
cada Estado membro trata sua política em matéria de taxa
de câmbio como um problema de interesse comum, estabelece que, no
caso de um país membro proceder a uma modificação
da taxa de câmbio que não se ajuste aos objetivos comuns
definidos pelo próprio Tratado em seu artigo 104, a Comissão
poderá autorizar os demais Estados membros a adotar as medidas
necessárias, por um período rigorosamente limitado, nas
condições e modalidades por ela definidas, a fim de limitar
as conseqüências de tal ação.
(3) O acordo de comércio interno do Canadá foi firmado
em 18 de julho de 1994. Seu texto pode ser consultado em www.intrasec.mb.ca/eng/ait.htm.
O conteúdo deste acordo define o conceito de incentivos de maneira
ampla, incluindo mecanismos fiscais, creditícios, de participação
acionária e outros, proíbe incentivos que impliquem ou produzam
a realocação de uma empresa de uma província a outra
e define alguns tipos de incentivos cuja utilização deveria
ser evitada (embora estes não sejam formalmente proibidos).
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