Um novo presidente foi eleito pelos argentinos. O funcionamento das
instituições democráticas permitiu superar os piores
efeitos do duplo colapso do governo do presidente Fernando de la Rua e
do regime de conversibilidade, ocorrido entre o fim de 2001 e início
de 2002. Os argentinos demonstraram na prática seu apego à
racionalidade e à moderação em sua convivência
política.
Isso é positivo, se considerarmos os efeitos práticos de
ambos os colapsos sobre as condições de vida e as ilusões
dos argentinos. Isso é ainda mais verdadeiro se recordarmos os
prognósticos sombrios formulados no primeiro trimestre de 2002
sobre o futuro da Argentina, tanto no país como no exterior. As
expressões "caos" e "crise terminal", evocavan
hiperinflação e colapso do sistema democrático. Nada
disso aconteceu, apesar de o país ter sofrido, nos últimos
anos, um severo retrocesso econômico e social, e de sua imagem no
mundo ter deteriorado.
Kirchner, o presidente eleito, tem pela frente uma complexa agenda interna
e externa. As questões de governabilidade, no plano político;
de competitividade sistêmica, no terreno econômico; e de coesão
na esfera social, destacam-se como prioritárias. No front externo,
destacam-se pelo menos três questões: a reestruturação
da dívida externa; a reconstrução da imagen do país
e as relações com o Brasil, EUA e União Européia
(UE), tanto no plano das negociações comerciais na OMC,
na ALCA e, no plano interregional, com a UE, como no da segurança
mundial e regional.
Levando em conta os claros pronunciamentos do governo do presidente Lula,
aqueles já feitos pelo presidente eleito e a conhecida posição
do ministro Roberto Lavagna - que datam do estabelecimento da relação
especial com o Brasil, durante a presidencia de Raúl Alfonsin -,
é possível, agora, prever um período em que se intensificarão
as relações bilaterais, em todos os planos, e não
apenas na esfera comercial.
Dessa forma, seria possível produzir uma situação
semelhante aos dos momentos da constituição do Mercosul,
incluindo a etapa de integração bilateral iniciada em 1986,
caracterizada pelo forte impulso econômico da idéia estratégica
de configurar um amplo espaço econômico comum. Assim sendo,
será possível observar um claro deslocamento do debate existencial
sobre o Mercosul, na direção de um debate metodológico
necessário sobre como e em que ritmos deverá prosseguir
a sua construção. Além dos fatores e argumentos políticos,
pesarão os de cunho técnico e os originados em interesses
econômicos concretos. Serão igualmente relevantes a liderança
política e o sentido prático dos que devem traduzir as iniciativas
em fatos concretos.
Seria recomendável basear o debate metodológico sobre as
perspectivas que surgem a partir dos planos complementares. Um deles diz
respeito às exigências que cada membro terá em função
de suas próprias políticas de transformação
produtiva e de coesão social. O outro se refere aos cenários
que poderão resultar da forma como evoluírem e forem sendo
concluídas - incluindo os prazos - as negociações
comerciais atuais na OMC; no âmbito hemisférico - em particular
com os EUA, tanto no formato da Alca, como no possível formato
"4+1" que cobrou uma atualidade renovada; no âmbito inter-regional
com a União Européia e no âmbito latino-americano
da rede de acordos preferenciais e de livre-comércio da Aladi,
especialmente no México e na Comunidade Andina.
Em relação a ambos os planos, o importante será
reconhecer que as exigências e os interesses dos membros atuais
do Mercosul não são necessariamente similares. Dois fatores
podem incidir sobre eventuais disparidades de critérios. Por um
lado, as diferenças existentes com respeito ao grau de desenvolvimento
de suas economias e de seus respectivos setores produtivos. Por outro,
as assimetrias de dimensão econômica e de poder relativo.
Ambos os fatores são mais notórios com respeito ao Paraguai
e ao Uruguai. No entanto, não é possível subestimá-los
no caso da Argentina e do Brasil.
São divergências potenciais que podem ser expressas em relação
a, pelo menos, dois aspectos cruciais das metodologias a empregar na construção
futura do Mercosul.
O primeiro aspecto se relaciona com os ritmos do avanço nas negociações
comerciais com os EUA e com a União Européia. Há
países - ou setores dentro deles -, que podem necessitar avançar
mais rapidamente do que outros. As maiores divergências poderiam,
eventualmente, produzir-se no âmbito das negociações
comerciais com os EUA. Os resultados da próxima visita ao Brasil
de Robert Zoellick, o negociador comercial americano, deverão ser
observados com atenção, dado o fato de que ambos os países
compartilham a presidência das negociações do hemisfério.
Também será necessário observar a intensidade das
consultas que, a esse respeito, os negociadores do Brasil virão
a manter com seus pares do Mercosul.
O segundo aspecto refere-se aos requerimentos de financiamento da reconversão
produtiva que possam necessitar as empresas - com diferenciações
setoriais - expostas às novas condições de competição
econômica que colocarão tanto o aperfeiçoamento da
união aduaneira como a abertura que, necessariamente, resultará
das negociações comerciais em curso - o que dependerá
dos prazos em que elas culminem e em que amadureçam as aberturas
comerciais sobre as quais se chegue a acordos, bem como da amplitude dos
resultados em termos dos compromissos que efetivamente se assumam,venham
a ser assumidos, por exemplo, em matéria agrícola, de serviços,
defesa comercial, propriedade intelectual e compras governamentais.
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