Os europeus comemoraram sua nova moeda. O euro já faz parte da
vida cotidiana de mais de 300 milhões de europeus. Muitos não
acreditaram que esse objetivo seria atingido. Mas, como outros objetivos
fixados a partir do lançamento do Plano Schuman - origem da atual
União Européia (UE) -, o do euro foi alcançado com
vontade política, perseverança na manutenção
do rumo estratégico e grande flexibilidade para adaptar a construção
européia às realidades dinâmicas e, muitas vezes,
voláteis.
Na hora do lançamento de sua nova moeda, a experiência européia
ensina que um processo voluntário de integração econômica
entre nações soberanas que não aspiram a deixar de
o ser plenamente se constrói gradualmente, com base em um rumo
estratégico de grande alcance e em uma forte vontade política.
Essa integração não surge de forma espontânea,
apenas pela adoção de medidas de abertura comercial. Não
segue, portanto, um caminho linear. É construído pedra sobre
pedra - como as velhas catedrais européias, até trocando
seu desenho ao longo do tempo - e muitas vezes há retrocessos e
até a sensação de haver fracassado. Os países
europeus souberam superar crises que pareciam terminais.
A construção nunca cessa. É um processo sem produto
final visível. Mesmo o que ocorre agora, com a entrada em circulação
da nova moeda, não é senão a conclusão de
uma das etapas do processo de integração. A uma etapa seguirá
outra e assim sucessivamente. O essencial é que, nesse processo
contínuo, os europeus deixaram para trás décadas,
até séculos, de confrontações e guerras. Fizeram
isso a partir de um núcleo básico - a aliança franco-germânica
- e de uma institucionalização que permitiu outorgar garantias
suficientes a todos os demais sócios de que seu interesse nacional
também seria respeitado. A percepção de ganhos mútuos
entre os países europeus- preservada através do tempo graças
à visão de conjunto apresentada pela Comissão Européia
e ao papel fundamental da Corte de Luxemburgo, como garantia da legalidade
- permitiu, até agora, o êxito de um fenômeno inédito
na história das relações internacionais.
A experiência européia deixa então uma lição
para o Mercosul. O importante na construção de um espaço
de paz, democracia e integração econômica - tarefa
que reconhece marcos de fundação (em 1986, com os acordos
bilaterais entre a Argentina e o Brasil, e em 1990, com a decisão
de criar o Mercosul) - é a preservação do rumo estratégico
e uma grande flexibilidade na hora de encarar realidades mutáveis.
Como no caso europeu, também existe um núcleo básico
do qual depende o êxito do empreendimento proposto, e que é
a aliança estratégica entre a Argentina e o Brasil.
Essa aliança se assenta sobre bases históricas, geográficas
e racionais. Implica transformar o fato da contigüidade física
em um ativo favorável ao desenvolvimento dos projetos nacionais
de consolidação da democracia, da modernização
econômica e social e da inserção competitiva no mundo.
Isso é hoje possível, pois as duas sociedades e também
as de seus dois sócios compartilham em sua essência valores
políticos, econômicos e sociais que são fundamentais.
Mas, sobretudo, é possível porque uma leitura, ainda que
superficial, da realidade internacional leva à conclusão
de que somar esforços é essencial na hora de enfrentar os
desafios da globalização, das incertezas de um espaço
mundial conturbado a partir dos atentados de 11 de setembro e das negociações
comerciais internacionais - inevitáveis e interligadas - tanto
no plano da Organização Mundial do Comércio (OMC)
como no da Alca e eventualmente do '4+1' e da União Européia.
Na perspectiva anterior, é necessário inserir a agenda
do Mercosul em 2002. Não é uma agenda fácil, porque
tampouco será um ano fácil. Os desafios e dificuldades são
conhecidos. Prefiro concentrar-me em três dados positivos que permitem
gerar uma confiança prudente, enquanto 2002 pode ser um ano de
progresso na construção do Mercosul.
O primeiro dado positivo é que o novo governo argentino reflete
uma coalizão de forças políticas majoritárias,
favoráveis à aliança argentino-brasileira e ao Mercosul.
Isso o novo presidente da Argentina, Eduardo Duhalde, assinalou em seu
discurso na Assembléia Legislativa. Por sua vez, a posição
favorável do governo brasileiro é conhecida e, com certeza,
continuará manifesta, defendendo um apoio financeiro internacional
que possa tornar viável o esforço da democracia argentina
para recuperar sua economia.
O segundo dado positivo é que tanto a Argentina quanto o Brasil
terão de abordar, em 2002, o início de complexas negociações
comerciais, cujos resultados dependerão vigorosamente de sua capacidade
e habilidade de trabalhar juntos, com programas de negociação
coordenados entre os dois países.
O terceiro dado positivo é que os sócios conhecem bem quais
são os nós a desatar para que o Mercosul seja novamente
visto como um projeto viável. O Mercosul não carece de diagnósticos
sobre seus problemas. O que requer é uma forte dose de ação
política para que volte a ser um instrumento funcional para reformas
profundas que os sócios ainda precisam enfrentar ou completar.
Tem de ser um Mercosul 'sério', em que todos os sócios vejam
lucros superiores aos que teriam se não fizessem parte do pacto;
em que seja nítida a preferência econômica derivada
do fato de ser sócio; em que existam poucas regras, mas que sejam
cumpridas, e um mínimo de disciplinas coletivas comerciais e setoriais;
em que se aborde sistematicamente a integração de cadeias
produtivas orientadas a competir globalmente; em que se avance na coordenação
macroeconômica - as mudanças na Argentina deveriam tornar
cada vez mais necessária e fatível essa frente de ação
comum; e em que se contemplem válvulas de escape para situações
especiais, temporárias e com procedimentos ágeis, porém
rigorosos. Definitivamente, um Mercosul crível, sem perdedores,
em que todos saibam que vão ganhar. Assim como a Europa, que conseguiu
neste 1 de janeiro alcançar a etapa do euro.
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