Insuficiências iurídico-ínstitucionais no Mercosul
O Mercosul é um projeto vitorioso, no que dizrespeito ao seu
impacto no crescimento do comércio e dos investimentos e na sua
presença e imagem internacional. Apesar de seu enfoque ter sido
predominantemente econômico, tem também um profundo sentido
político e estratégico, que se reflete na criação
de um âmbito regional de estabilidade, paz, liberdade e democracia.
Entretanto, à medida que o seu desenvolvimento avança,
o Mercosul está colocando em evidência algumas insuficiências
jurídico-institucionais, às vezes por deficiência,
e outras por carência, que merecem uma reflexão e, sobretudo,
ação.
Essas insuficiências são observadas com mais clareza em
situações como as que se manifestaram como conseqüência
de medidas provisórias do governo do Brasil, outorgando incentivos
especiais para o investimento automobilístico no Nordeste, Norte
e Oeste do país (MP n° 1532 de dezembro de 1996), e restringindo
o financiamento das importações, inclusive daquelas provenientes
dos países-sócios (MP n° 1569 de março de 1997).
Não são insuficiências que estejam indicando, necessariamente,
uma fratura estrutural no edifício de cooperação
e integração econômica, cuja construção
os sócios fizeram, frente a partir da assinatura, ern 1391: cio
Tratado de Assunção. Mas, se não ícrem percebidas
a tempo, podem ter ura efeito parecido ao de uma Satura estrutural.
As situações ocorridas são situações
naturais, derivadas do próprro dinamismo que o comércio
e os investimentos estão adquirindo no Mercosui. Mas também
é certo que uma reiteração desse tipo de situação
e a tendência de negociar politica
mente a solução de cada conflito comercial pode terminar
desgastando a credibilidade do Mercosui perante os investidores, cidadãos
e observadores externos.
As defiáências surgem com mais nitidez, particularmente,
quando se apresen-
tam controversas comerciais, ocasião em que se observa a existência
de normas infe, precisas e confusas (caso, por exemplo, da decisão
CMC n° 3/94 ou do acordo bilaterai automobilístico Argentina-Brasii,
de dezembro de 1994); a ausência de urna normativa eficiente (caso,
por exemplo, das restrições ao financiamento das importarções)
e, em particular, as dificuldades que existem para processar tais controvérsias
nos órgãos do Mercosui, sem necessidade de recorrer ao mais
alto nível político para encontrar uma solução.
A Comissão de Comércio tem conseguido resolver um número
significativo de
questões comerciais. Mas aquelas mais importantes, devido ao seu
impacto econômico, tiveram um processamento somente por intermédio
de negociações políticas, muitas vezes fora dos órgãos
do Mercosui, tendo como resultado nem sempre uma solução,
mas sim um deferimento da respectiva controvérsia (entre outros,
o caso dos lubrificantes e dos produtos farmacêuticos).
Somente em um caso conhecido entre o Uruguai e a Argentina é que
se recor-. reu aos mecanismos do Protocolo de Brasília, e fomos
informados de algumas outras apresentações de particulares
à respectiva Seção Nacional aplicando o artigo n°
25 do Protocolo. Nenhuma das situações significativas de
descumprimento dos compromissos jurídicos do Mercosui, bem como
nenhuma das questões de interpretação deram lugar
a ações originadas no Protocolo de Brasília.
Essa tendência observada no Mercosui é diferente da que
se manifesta no Acordo de Livre Comércio entre o Canadá
e os Estados Unidos - o Nafta -, na União Européia e, inclusive
nos.dois últimos anos, na nova Organização Mundial
de Comércio. Em todos esses casos, governos e particulares consideram
normal recorrer aos mecanismos de solução de controvérsias
de um acordo comercial, quando se encara um conflito sujeito à
lei pela aplicação ou interpretação da normativa
jurídica estabelecida. Assumem, e com razão, que foram estabelecidos
para serem utilizados, e que a sua utilização não
implica animosidade política contra quem se considera que não
cumpriu os seus compromissos, mas sim, pelo contrário, permite
retirar a dramatici-dade política das diferenças por meio
do tratamento da matéria por especialistas, árbitros ou
juizes. Eles são o modo racional e civilizado de dirimir conflitos
comerciais sujeitos à lei.
São observadas carências em outros casos, tais como cs de
serviços s compras governamentais, em relação aos
quais os governos ainda não negociaram regras de jogo que já
deveriam ter sido aprovadas, levando-se em consideração
a profunda assimetria que existe entre as condições de acesso
que as empresas brasileiras têm no mercado argentino (relativamente
mais aberto) e as dificuldades que, por sua parte, as empresas argentinas
experimentam para ingressar no mercado brasileiro (relativamente mais
fechado). Esta situação gera um desequilíbrio nos
interesses recíprocos que não estava previsto - ao menos,
par tanto tempo - quando os sócios se comprometeram a criar um
mercado comum, para o qual concordaram, de boa-fé, começar
imediatamente pelo comércio de bens, estando entendido que logo
seriam negociados também os serviços e as contas públicas,
como corresponde a um mercado' comum. Ao não ter sido iniciada
tal negociação - só se avançou .em trabalhos
técnicos e foi mencionada em diversas oportunidades o fato de que
se negociará no faturo, mas não existe um cronograma de
negociação estabelecido - o cumprimento do princípio
de reciprocidade que foi estabelecido no artigo n° 3 do. Tratado de
Assunção para o funcionamento do mercado comum está
sendo afetado. É preciso levar-se em consideração
que, sob o ponto de vista jurídico, o mercado comum já está
estabelecido a partir da finalização do período de
transição, sem. importar que sejam requeridos anos para
o seu completo desenvolvimento, como ocorreu no caso do Mercado Comum
Europeu.
A importância econômica da questão jurídico-mstitucional
A pergunta que surge nestes casos é se o processo de integração
está efetivamente orientado por regras objetivas, custodiada a
sua observância por mecanismos institucionais que contribuam para
reforçar disciplinas coletivas entre os sócios e limitar
a tentação natural a comportamentos unilaterais contrários
aos acordados. Esta é uma pergunta que diz respeito à eficiência
política e econômica do Mercosul.
Com razão, a experiência histórica indica que a qualidade
das regras de jogo e das instituições em um processo de
integração como o Mercosui, mostra aos investidores o grau
de credibilidade que podem ter no que diz respeito ao mercado ampliado
que os países-sócios prometem. É em função
dessa credibilidade que serão definidas as suas estratégias
de investimento, produção e comercialização
na região. Quanto menos acreditem na solidez dos compromissos do
Mercosui, especialmente no caso das emergências econômicas,
gerais ou setoriais, maior será a sua tendência a localizar-se
no mercado de maior dimensão.
Além disso, sabem que quanto menor seja a qualidade jurídica
e institucional do processo de integração, menor será
a capacidade dos governos para resistirem às pressões protecionistas
de setores que, às vezes, enfrentam séries problemas de-ajuste
na transformação produtiva e na abertura da mercado regional,
mas que, às- vezes, cambem procuram no atrase no cumprimento aos
prazos e na protelação des compromissos assumidos peios
sócios, uma forma prática de perpetuar situações
de inefi-ciências e da falta de vontade de competir. Compromete-se,
desta forma, o "efeito disciplina", que é uma das principais
contribuições dos acordos regionais de integração
para os países que deles participam, especialmente se são
países comuma tradição de instabilidade que tentam
assumir, internamente, ambiciosos planos de estabilização
e de transformação produtiva.
É preciso levar em consideração que, geralmente,
a credibilidade da integração econômica na América
Latina tem sido baixa, conseqüência de muitos arios de frustração
produzidas por experiências como a Aíalc e o Grupo Andino,
e inclusive, pela Aíadi. Muitos têm a impressão de
que a América Latina praticou uma espécie de jogo de "integração-ficção",
com um discurso duplo entre a retórica e a efetividade normativa,
ao qual as regras de jogo e os prazos para a consecução
dos objetivos ficaram sistematicamente corroídos por um hiper-pragmatismo
na concepção do valor dos compromissos assumidos. Neste
sentido, o Mercosul não é imune ao que se pode chamar de
"vírus da aladificaçáo", isto é,
a idéia de que cs acordos são cumpridos apenas quando é
possível, pensamento que por muitos anos caracterizou a Alaic e
a Aíadi. Este pensamento se traduz em uma sensação
de precariedade que termina por desvalorizar a idéia da integração,
tirando sua eficácia e encaminhando-a para o "mu- seu das
irrelevâncias".
Qualidade das regras do jogo e funcionalidade institucional
A acumulação de controvérsias comerciais que não
são eficazmente processadas pelos mecanismos institucionais e que,
em muitos casos, originam-se de regras de jogo confusas - ou pela sua
ausência - pode afetar, entre os sócios, a percepção
de ganhos mútuos, sustento político do Mercosul e da sua
estrutura política.
Algumas dessas controvérsias põem em jogo a solidez do compromisso
assumido de garantir o "acesso irrestrito aos respectivos mercados
em condições distintas às que se aplicam a terceiros
países" - por exemplo, no caso dos lubrificantes e dos produtos
farmacêuticos, ambos afetados por restrições náo-tarifárias
que já deveriam ter sido eliminadas, de acordo com o pacto original
- e a efetividade de uma "disci- plina coletiva em matéria
de promoção de investimentos como parte das disciplinas
coletivas em matéria de políticas macroeconômicas
e políticas comerciais" - por exemplo, no já mencionado
caso dos incentivos aos investimentos automobilísticos. Estes são
os dois pilares centrais do projeto de integração econômica.
Existem outros.
Mas, sem estes dois, o Mercosul fica exposto a situações
que podem afetar a sua credibilidade perante os investidores e, inclusive,
afetar a sua sobrevivência, a longo prazo.
Além disso, são situações que podem estar
refletindo sérias debilidades metodológicas e institucionais.
Ou seja, falhas nos métodos de trabalho, na qualidade e na precisão
das regras do jogo, no valor que elas possuem como orientadoras do processo
e na mecânica de criação normativa e de aplicação
efetiva das regras acordadas. Os exemplos são numerosos e originam-se
no comportamento dos quatro sócios, particularmente, em matéria
de restrições não-tarifárias, na aplicação
real das regulações que fazem ao livre comércio e
à união aduaneira, na ausência de vávulas de
escape, na regulamentação de setores-chave, como o automobilístico.
Observam-se duas posições extremas com relação
à questão institucional e das regras do jogo do Mercosul.
Uma é minimalista. Considera que a integração é
um processo de negociação contínua, que requer um
mínimo de regras de jogo: e instituições simples
e controladas pelos governos - até aqui não há problema
-no qual as regras de jogo são somente indicadores dos avanços
nas negociações, e que sua aplicação depende
da vontade de cada governo - "e aqui está o problema".
Esta idéia da norma como "instrumento descartável"
se reflete na posição do fisco no caso "Cafés
La Virgínia" (1994), quando destaca que os compromissos da
Aíadi eram de caráter ético e não imperativo
e que, portanto, os acordos parciais celebrados dentro dela instituíam
mecanismos flexíveis onde os países podiam modificar, unilateralmente,
os benefícios negociados. Felizmente, a decisão da Corte
Suprema foi contrária a essa tese hiperpragmática. Ela implicaria
enviar aos mercados um sinal de que as regras são cumpridas quando
se pode. Se a realidade assim o requer, elas mudam. São de baixa
precisão jurídica: constam das atas, mas são pouco
claras e controversas. Em termos de relações de poder, ideais
para o mais forte.
A outra posição é maximalista. Pretende orientar
a integração por intermédio de normas rígidas
custodiadas por instituições complexas, quase sempre inspiradas
em uma visão jurídica e simplista da construção'
européia - que não corresponde à realidade histórica
- e que recorre a conceitos confusos - como o da supranaciona-íidade
- que evocam transferências de responsabilidade para burocracias
irresponsáveis, desde o ponto de vista da institucionalização
democrática.
Três funções devem ser cumpridas pelas instituições
que passam por um processo de integração voluntária
entre nações soberanas, como é o Mercosul, se quisermos
fortalecer a sua credibilidade e enviar sinais claros aos mercados com
relação à sua sustentabüidade a longo prazo.
A experiência histórica indica que a taxa de fracassos em
matéria de integração é elevada. Os investidores
estão cientes disso. Quase nunca se trata de fracassos abertos,
por exemplo, por intermédio da ruptura do vínculo associativo,
por um ou mais países, como ocorreu com o Chile e, mais recentemente,
com o Peru, no Grupo Andino. Ao contrario, na maioria das vezes, trate-se
de um deslizamento gradual do processo de integração' para
o palco da irrelevância política e econômica. O processo
de integração pode, inclusive, subsistir, mas deixa de ser
um instrumento de trabalho útil para os países-sócios.
A primeira função é a de assegurar o acesso irrestrito
aos respectivos mercados dos sócios. Só a medida que o direito
a tal acesso esteja garantido jurisdicionaimente - por juridisção
arbitrai ou judicial - pode ser criado um quadro de previsibilidade para
o investidor, como quando, por exemplo, investe em um país membro
da União Européia ou do Nafta.
A segunda é a de assegurar a preservação dinâmica
da reciprocidade de interesses que sustenta o vínculo associativo
entre os sócios do MercosuL Neste tipo de processo, os países
participam à medida que recebam mais lucros estando dentro do que
estando fora. Uni exemplo, novamente, é o caso do Chile e do Peru
no Pacto Andino. É a percepção de ganhos mútuos
o que explica a criação de um processo de integração
bem como a sua vitalidade posterior. Isto requer situar, dinamicamente,
os legítimos interesses nacionais e setoriais dentro de uma visão
de conjunto com sentido estratégico e de longo prazo jogo. A manutenção,
por muito tempo, de assimetrias artificiais pode distorcer as condições
da concorrência econômica entre os sócios, tanto a
nível comercial quanto de investimentos, e destruir, desta forma,
a legitimidade interna do próprio processo de integração.
Isto é mais sério se existe uma assimetria natural pronunciada
com relação ao tamanho dos respectivos mercados.
É ao redor dessas três funções que o debate
institucional no Mercosul deve ser articulado. Na etapa iniciai, as instituições
existentes funcionaram relativamente bem. Tratava-se, sobretudo, de criar
interdependência onde predominava a margjna-lização
econômica relativa entre os sócios. Estamos entrando agora
- como conseqüência do próprio êxito do Mercosul
- em uma etapa mais difícil na qual, cada vez mais, o problema
será administrar esta interdependência, a fim de impedir
que a lógica da fragmentação termine superando a
da integração.
Um- enfoque funcional, intermediário entre as posições
maximalistas e minimalistas, ao contrário, pode permitir centralizar
o necessário debate institucional em tomo das questões concretas
e essenciais à vitalidade e, inclusive, à sobrevivência
da integração como um projeto relevante para cada um dos
sócios e crível para os investidores. Nesta perspectiva,
nem o imobilismo minimalista (não é preciso mudar nada,
tudo está bem) nem o radicalismo maximalista (é preciso
mudar tudo, dando um salto em direção à complexas
estruturas jurídicas e institucionais) parecem ser a resposta conveniente.
Segurança Jurídica, e institucionalização
da flexibilização
O Mercosul está submetido a requerimentos que podem ser, mas não
necessariamente devem ser, contraditórios. Pelo contrário,
visando a encácia do processo de integração, precisamente
por ser voluntário e entre nações que ainda não
possuem um nível de estabilização econômica
satisfatória para as expectativas dos investidores, é necessário
que os governos estabeleçam um razoável equilíbrio
entre tais requerimentos.
Um é o da segurança jurídica, expressa em regras
de jogo com alto potencial de efetividade, derivado da qualidade do processo
de criação normativa e das próprias normas, assim
como da sua sustentação política como conseqüência
da reciprocidade de interesses que expressam.
O outro, é a necessária flexibilização dos
compromissos jurídicos, a fim de levar em consideração
a tripla dinâmica de transformação originada no contexto
internacional, nos processos internos de estabilização econômica
e transionnação prouUtxva , e no desenvolvimento das interações
econômicas entre os sócios, este último conseqüência,
em grande parte, do próprio êxito do Mercosul.
No primeiro semestre de 1995, em parte como conseqüência do
denominado "efeito tequila", ficou evidente que a tensão
segurança jurídica/flexibilização será
uma das mais difíceis de resolver na evolução do
Mercosul. Situações deste tipo podem se repetir. Pelo menos
é isto o que pensam os mercados.
Salientamos que possuir regras de jogo e instituições de
qualidade é crucial para o êxito do Mercosul. Elas condicionam
a sua eficácia, ou seja, a obtenção dos resultados
desejados. Contêm sinais para os mercados, que bem captados pelos
agentes econômicos, podem ser traduzidos nos comportamentos econômicos
desejados, como, por exemplo, aumentar o investimento produtivo em função
do espaço ampliado.
Para isso, as regras de jogo devem ter duas qualidades: a transparência,
ou seja, um acesso fácil aos seus textos, o que se obtém
com a sua oportuna publicação no Boletim Oficial; e a clareza,
ou seja, um acesso fácil ao seu conteúdo e mensagem, p que
se obtêm com racionalidade econômica e precisão na
linguagem jurídica.
Mas, como também já foi destacado, toma-se crucial um grau
razoável de previsão nas regras de jogo. Assim o requer,
naturalmente, um dos principais destinatários dos sinais do mercado,
enviados pelos governos desde que assinaram o Tratado de Assunção:
o investidor, disposto a correr riscos em função do amplo
mercado que lhe foi prometido.
Um investidor pode compreender a necessidade da flexibilização
na aplicação dos instrumentos do Mercosul. Ela é
uma conseqüência natural da dinâmica econômica
internacional e interna de cada um dos sócios. O que não
pode compreender é a mudança imprevista das regras de jogo
devido a atos unilaterais arbitrários, mesmo quando sejam prontamente
legitimados pelos órgãos do Mercosul. Isto não afeta
somente a segurança jurídica. Podem ser afetados interesses
concretos dos que investiram respondendo a sinais governamentais. Mais
ainda, pode afetar a credibilidade de to ao o processo de integração
e das políticas econômicas dos sócios.
Por isto, é importante pôr limites à tendência
de uma flexibilização instrumental "de fato" do
Mercosuí. Isto se consegue institucionalizando a flexibüizaclo.
É da essência de um processo voluntário de integração
econômica entre nações soberanas que preservam uma
ampla margem de liberdade de* ação, convencer os operadores
econômicos - internos e externos - de que os governos decidiram
limitar efetivamente a sua capaciaaae para atuar de forma unilateral e
discricionária naquelas matérias explicitamente submetidas
a uma disciplina coletiva.
A idéia de institucionalizar a flexibilização é
ainda mais importante se levarmos em consideração que subsistem
fatores que podem incidir nas políticas macroeconômicas dos
sócios, por exemplo, em matéria cambial, gerando distorções,
algumas sérias, nas concorrências relativas entre os sócios.
É preferível antecipar este tipo de situação,
prevendo válvulas de escape de emergência que permitam adaptar
os compromissos por intermédio de procedimentos preestabelecidos,
que, por sua vez, preservem os interesses dos que investiram em função
da expectativa do mercado amadotadas. Os artigos n°s 22 e 25 do Acordo
de Complementação Econômica n° 14 entre a Argentina
e o Brasil, ainda em vigor, oferecem um precedente digno de consideração.
Reflexões sobre dois casos concretos.
O Mercosuí pressupõe que os sócios aceitaram, livremente
e de boa-fé, submeter-se às disciplinas comuns. Por vontade
própria, restringem a possibilidade de comportamentos unilaterais
contrários ao acordado e aos interesses comuns que justificam o
vínculo associativo estabelecido permanentemente. A- sua legitimidade
reside em uma visão de conjunto com interesses estratégicos,
de natureza política e econômica, e na preservação
dinâmica de um quadro de ganhos mútuos. A associação
não pode ficar entregue somente à relação
de força entre os sócios. Portanto, são estabelecidas
regras de jogo que os obrigam e que geram direitos e obrigações
para os seus cidadãos. Se não fosse assim, nenhum país
aceitaria participar livremente.
Nesta perspectiva, localizam-se dois casos concretos no qual podemos
considerar que o que foi acordado não foi plenamente respeitado,
afora a compreensão que podemos ter devido às razões
políticas e econômicas que os explicam. Não são
os únicos casos, e podemos encontrar outros exemplos que envolvem
situações de des-cumprimento por parte de cada um dos quatro
sócios. Entretanto, são os casos que em jogo.
O primeiro caso á o que pode ser denominado como o da segunda
crise automobilística do Mercosuí. A primeira ocorreu em
junho de 1995. Os dados são conhecidos: a Medida Provisória
n° 1532 do governo brasileiro estabelece incentivos para atrair investimentos
automobilísticos no Nordeste e em outras regiões. O seu
conteúdo não foi uma surpresa, já que ao menos desde
agosto de 1996 era visível que isto iria acontecer, no contexto
da negociação da reforma constitucional para a reeleição
presidencial. Importantes investimentos foram anunciados a partir de tais
incentivos. Isto também era conhecido.
A medida provisória agrava um sério problema do Mercosuí,
que é o da assimetria de estímulos fiscais para os investimentos,
especialmente de competidores globais. Isto implica a possibilidade de
desnivelar o campo do jogo a favor, do país com maior capacidade
econômica para oferecer tais incentivos, que, além disso,
é o de maior mercado. Gera uma situação incompatível
com uma idéia centrai ao Mercosuí, que é o direito
que os sócios se outorgaram, reciprocamente, para o acesso irrestrito
aos seus mercados e para todo o universo tarifário. Um instrumento
ainda não em vigor, que é o Protocolo sobre Promoção
e Proteção de Investimentos de Estados Não-Participantes,
agravará ainda mais a situação, ao estabelecer que
"cada Estado-Participante promoverá, em seu território,
investimentos de Terceiros Estados...". Legaliza a concorrência
aberta na utilização de estímulos para a localização
de investimentos estrangeiros.
De fato, a medida provisória estabelece um tratamento similar
ao das zonas francas para projetos do setor automobilístico. Institucionaliza
uma espécie de "projetos francos". É a partir
dessa realidade econômica que deve ser examinada a sua compatibilidade
com os compromissos assumidos no Mercosuí. Foi precisamente o Brasil
quem impulsionou a Decisão CMC n° 8/94 que estabelece, para
os produtos originados nas zonas francas, um tratamento similar ao que
recebem os de terceiros países.
Várias decisões adotadas em Ouro Preto modificaram o Tratado
de Assunção, estabelecendo exceções aos seus
principais compromissos. São as que estabelecem o reeime de adequação,
a tarifa externa comum e a transição para o açúcar
e o setor automobilístico. De acordo com o artigo n° 53 do
Protocolo de Ouro Preto foram convalidadas. Mas não poderiam ser
modificadas ou ampliadas em sua vigência, a não ser por outro
instrumento jurídico similar, ou seja, um tratado. Devido ao seu
caráter excepcionai, a interpretação do seu alcance
deve ter um caráter restrito.
A Decisão CMC n° 29/94 é a que estabelece o regime
de adequação no setor automobilísitico. Pelo qúe
já destacamos, tem força similar à de um tratado.
Ela prescreve que as partes deverão pôr em vigor, em Io de
janeiro do ano 2000, um Regime Comum Automobilísitico que. necessariamente,
deverá conter - entre outros eiementos o-- a ausência de
incentivos nacionais que distorçam a competidvi-dacie na região.
Mesmo sendo um compromisso que faz referência ao futuro regime,
torna-se óbvio, em uma interpretação de boa fé
do seu conteúdo, que um sócio não pode, durante a
transição, estabelecer, sem consentimento cfos outros sócios,
incentivos que na prática corroam a eficácia da obrigação
assumida na Decisão CMC n° 29/94.
Portanto, podemos perceber que devido ao alcance restritivo das exceções
que foram estabelecidas no Tratado de Assunção, em Ouro
Preto, e pelo estabelecido na Decisão CMC n° 29/94, a medida
provisória sobre incentivos aos investimentos automobilísticos
no Nordeste e em outras regiões do Brasil contém elementos
contrários aos compromissos assumidos no Mercosul, que, em nenhuma
hipótese, poderiam ter uma vigência superior a Io de janeiro
de 2000. Por analogia, os produtos originados a partir dos "projetos
francos" que forem autorizados- por esta medida deveriam ter um tratamento
similar ao previsto na citada Decisão CMC n° 8/94.
Além de tudo, a medida provisória foi aprovada tendo em
conta que a Argentina e o Brasil haviam reconhecido em acordos bilaterais
assinados em dezembro de 1994 e depois, em janeiro de 1996, os seus respectivos
regimes automotores, tal como estavam vigentes naquele momento. Tal reconhecimento
implica que toda medida posterior que signifique introduzir novos incentivos
não pode ter validade entre ambos sócios, sem um expresso
reconhecimento adicional. Do contrário, estará sendo alterada
a balança de interesses recíprocos cristalizada nos acordos
biíaterias que, por sua vez, foram negociados a partir da Decisão
CMC n° 29/94.
O segundo caso é o das restrições ao comércio
intra-Mercosul, originadas pela Medida Provisória n° 1569 do
governo do Brasil, que faz referência ao financiamento das importações.
O que dizem as regras do jogo no Mercosul com relação às
restrições ao comércio? Uma regra é a do artigo
n° 2 do Anexo do Tratado. Introduz importantes definições
para o tratamento da questão. Distingue, por um lado, "gravarnes"
que são "os direitos aduaneiros e qualquer outros encargos
de efeitos equivalentes, sejam de caráter fiscal, monetário,
cambiaria ou de qualquer outra natureza, que incidam sobre o comércio
exterior". Por outro lado, as "restrições",
que são "qualquer medida de caráter administrativo,
financeiro, cambiário ou de qualquer outra natureza, mediante a
qual o Estado-participante impeça ou dificulte, por decisão
unilateral, o comércio recíproco. O texto é claro
e bem amplo.
Mas a regra de jogo básica é a do artigo n° 5, letra
a, que, combinada com o artigo 1 do Anexo, estabelece o compromisso de
eliminar todas as restrições não-tarifárias
e demais restrições ao comércio recíproco,
até dia 31 de dezembro de 199-4. E complementada pelo artigo 7
do Tratado, que impede distinguir entre produtos nacionais e originários
ác Mercosul em matéria de impostos, taxas e outros' gravarnes
internos.
A Decisão CMC n 3/94 flexibiliza este compromisso do Tratado?
Ela'tem urna redação confusa e de pouca qualidade jurídica:
nos autorizaria a pensar qüe podem subsistir algumas restrições
não-tarifárias além do período de transição.
O seu artigo 4 introduz uma regra ambígua que pode ser interpretada
de várias maneiras: "Até que não seja alcançada
a total harmonização das restrições não-tarifárias,
Os Estados-participantes se comprometem a não aplicar em seu comércio
recíproco, condições mais restritivas do que as vigentes
para o comércio interno e externo".
Entretanto, de todas essas regras surge uma interpretação
clara: as únicas condições restritivas válidas
para o comércio recíproco, sejam elas de qualquer natureza,
"incluindo as cambiadas ou financeiras", são as que já
estavam vigentes e foram registradas. As novas deveriam ser registradas
pelo Grupo Mercado Comum para ter validade. "Quem estabelece as novas
condições com efeitos comerciais restritivos, não
aceitos pelos sócios, incorreria em descumprimento do que foi acordado".
O que fazer quando são apresentadas situações como
as descritas para o setor automobilístico e para as restrições
ao comércio, tais como a mencionada medida provisória sobre
financiamento de importações, ou as medidas que ainda regem
o tema dos lubrificantes e dos produtos farmacêuticos?
As regras do jogo apresentam várias vias de ação.
Pode-se recorrer à Comissão de Comércio, efetuar
consultas, negociar, procurar soluções que restabeleçam
o jogo de interesses entre os sócios. Também pode-se recorrer
ao mecanismo de solução de controvérsias vigentes
e que foi criado em 1991, pelo Protocolo de Brasília. É
o que normalmente ocorre no âmbito da OMC, do Nafta ou do acordo
Canadá-EUA.
Esgotada a etapa de consultas e negociações, ou como parte
dela, a via arbitrai é útil quando existem diferenças
e interpretações das regras de jogo. Demora algum tempo.
Mas é uma maneira civilizada de dirimir controvérsias comerciais.
Permite retirar dramaticidade à questão, encontrar soluções
racionais e fortalecer a credibilidade dos investidores nas regras do
jogo.
Se, por exemplo, o Brasil considera que os incentivos, regionais aos
investimentos automobilísticos ou às restrições
ao financiamento de importações não constituem um
descumprimento ao que foi estabelecido, e se outro ou outros sócios
consideram que, ao contrário, constitui, eles podem recorrer -
sem prejuízo de continuar negociando - aos mecanismos que os próprios
sócios estabeleceram para situações desse tipo. Isto
não impede de encontrar uma solução antes da decisão
judiciai.
Recorrer aos mecanismos para a solução de controvérsias
do Protocolo de Brasília, por parte dos países que se consideram
afetados pelo descumprimento do que foi acordado por um dos sócios
ou por parte de suas empresas, não só permitiria encontrar
respostas jurisdicionais às diferenças comerciais, mas também
fortaleceria a ima
[...]
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