Felix Peña, diretor executivo do Clube Europa-Argentina e ex-funcionário
da Chancelaria argentina, não é apenas um intelectual de
peso. Sua capacidade para elaborar estratégias de negociação
e sua reconhecida influência concederam-lhe a categoria de "think
tank". Na hora das decisões difíceis, funcionários
do Palácio San Martin e do Ministério da Economia costumam
escutar suas opiniões. Durante um seminário sobre Relações
entre a Europa e a América Latina, organizado pela União
Européia na cidade britânica de Steyning, Peña concedeu
uma longa entrevista à Gazeta Mercantil Latino-Americana.
Gazeta Mercantil Latino-Americana - Durante a palestra que deu no
seminário, o Sr. afirmou que a América Latina não
existe. Como fundamenta o que para alguns pode soar como uma frase antipática?
Felix Peña - Também considero a frase antipática.
Mas é preciso ser realista. Eu a pronunciei no contexto de um debate
sobre as negociações com a União Européia
é ó Nafta. "E nesse contexto percebo que os países
da América Latina não existem como uma unidade econômica
que possa sentar-se a uma mesa de negociação para discutir
a redução de tarifas ou a abertura de mercados. Diferente
é se falarmos de uma realidade histórica ou cultural, na
qual existem elementos que diferenciam a região. O conceito de
América Latina como conceito operacional do tipo político
e econômico se movimenta nos 60, 70 e 80. E, curiosamente, quem
mais promove o conceito de América Latina como um espaço
desse tipo é o México. Talvez tudo tenha começado
a mudar com a incorporação do México ao Nafta. Hoje
em dia, existem realdades mais sub-regionais, como podem ser as do Caribe,
da América do Sul, da América Central e do México.
GMLA - Outra das idéias expostas foi a proposta do Triângulo.
Em que consiste?
Peña - E uma idéia estabelecida no contexto da vinculação
do sul da América do Sul, sobretudo daqueles que têm mais
diversificado o seu comércio exterior e para os quais a Europa
significa muito. Há uma realidade histórica, que sempre
existiu, e que é a de uma relação triangular, desde
o vínculo argentino, com a América do Sul-Europa-Estados
Unidos. Os três eixos têm interatuado com força entre
si. Projetado à situação atual e futura da nossa
relação com o Mercosul, com a União Européia
e o Nafta, o Triângulo tem duas formas de aplicação.
Por um lado, a recusa à idéia de que um dos eixos exclua
o outro. A recusa às alianças políticas e econômicas
exclusivas e excludentes. A outra é a forma positiva: ver nossa
inserção internacional por meio de fortes acordos de integração
e de livre comércio em tomo dos três lados do triângulo.
GMLA - Entretanto, é como se a União Européia
e os Estados Unidos estivessem competindo para seduzir o Mercosul e encaminhá-lo
para um acordo comercial. Como o Mercosul deveria negociar e se movimentar
com relação a isso?
Peña - Do jeito como estão estabelecidas as coisas,
observase que o Triângulo tem sida parte da nossa realidade histórica
e está implícito na nossa realidade econômica, política
e cultural. Façamos da explicação do Triângulo
a coluna Vertebral da nossa estratégia de inserção,
internacional.
Isso, na prática, significa recusar tudo que indique que um eixo
preferencial exclua o outro, especificamente o eixo preferencial continental
ou hemisférico versus o eixo preferencial atlântico-europeu,
ou viceversa.
Creio que deveríamos nos lançar às negociações
hemisféricas e com a Europa que sejam transtarifárias, ou
seja, que ultrapassem uma negociação de tarifas, que se
negocie tudo aquilo que sejam regras de jogo, disciplinas comerciais,
políticas de concorrência, e que apliquemos regras-paãrão
para os eixos hemisférico e transatlântico, e trabalhemos
junto com o Nafta e a UE no fortalecimento das regras do jogo da OMC e
das disciplinas da OMC onde há acordos regionais. Porque um acordo
que é transparente e claro, como o Mercosul, não pode ter
problema algum em ser monitorado pela OMC.
E preferível uma opinião imparcial e objetiva do secretariado
da OMC a uma imagem do Mercosul como algo discriminatório. É
a OMC que tem que opinar se o Mercosul écoerente ou não
com as regras e também fazer o mesmo com o Nafta e a UE.
GMLA - Provavelmente o resultado traria algumas surpresas.
Peña - Provavelmente sim ... e colocaria o debate sobre a consistência
dos acordos regionais com o multilateralismo em um marco mais objetivo
e mais imparcial.
GMLA - Que papel poderia desempenhar a Inglaterra em um acordo entre
a União Européia e o Mercosul, considerandose os questionamentos
que esse país tem quanto à Política Agrícola
Comum da UE e aos subsídios agrícolas?
Peña - A Grã-Bretanha e outros países europeus
são e vão ser muito mais sensíveis aos argumentos
da Argentina e do Mercosul sobre a irracionalidade econômica da
Política Agrícola Comum e sobre os altos custos fiscais
e ecológicos da Europa para continuar com uma política de
subsídios, que, embora venha sendo modificada, está longe
de ser uma modificação de fundo como conviria não
só ao Mercosul, más à própria Europa. Neste
caso, somos aliados naturais. A agricultura é apenas um exemplo
dos temas que devem ser tratados na relação UE-Mercosul,
mesmo quando, por certo tempo, deixamos de lado a discussão sobre
o acesso ao mercado ou tarifas. Poderíamos trabalhar normas técnicas,
marcos reguladores que estão incluídos no acordo marco assinado
em Madrid entre a UE e o Mercosul em dezembro de 1995. Mas não
se pode ser mais audaz e até mesmo pensar se realmente a Europa
e os Estados Unidos estão interessados em uma liberalização
ampla do comércio.
Poderíamos, no mínimo, incluir nessa relação
triangular a idéia do Mercosul e da América do Sul como
zona livre de subsídios às exportações agrícolas
e imaginar um pacto de não-agressão entre a UE e os Estados
Unidos enquanto não sejam aplicados subsídios às
exportações agrícolas no âmbito da América
do Sul. Se quisermos discutir seriamente o assunto dos subsídios,
temos que abordálo.
GMLA - O Sr. concorda com os analistas e os economistas em relação
à Medida Provisória 1.569 (de restrição ao
financiamento das exportações), que, se esta não
tivesse sido tomada, o Brasil teria que desvalorizar o real?
Peña - É muito difícil opinar seriamente sobre
esse assunto, e não sei se os que opinaram assim têm todos
os elementos de juízo para dizer categoricamente que o Brasil não
tinha alternativa, senão desvalorizar. Não tenho claro a
que se referem os que dizem que "o Brasil não tem outra alternativa
senão desvalorizar". Sei que muitos opinaram assim; o governo
do Brasil está dando mensagens muito contundentes de que não
está pensando em uma maxidesvalorizção.
Creio que eles (os brasileiros) observaram um problema que existe no
setor externo da economia e aplicaram um instrumento, provavelmente dosado,
levandose em conta o estado do problema. Ultrapassando seu impacto econômico,
a adoção dessa medida deixa de lado princípios inerentes
à constituição de uma união alfandegária.
Se temos uma união alfandegária e nos disciplinamos, temos
que reconhecer que tudo que for relativo a fluxo de comércio deve
ser discutido entre os sócios. O Tratado de Assunção
foi assinado por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai na plena vontade
dos países, sem que fossem obrigados a fazêlo. As regras
do jogo são estabelecidas para algo, e, se não são
cumpridas, perdemse a credibilidade e a eficácia.
Quando falo de regras do jogo, faço-o a partir do valor econômico
que têm. A Argentina, pela sua projeção no mundo,
pela sua capacidade de produzir bens e prestar serviços de forma
competitiva, não deve limitarse ao Mercosul, deve fortalecer o
seu caráter de "global trader", mas o Mercosul é
uma plataforma para conseguir isso. Portanto, temos que cumprir o que
acertamos, e que fique claro que não digo que apenas o Brasil não
cumpre o acertado, isto é para todos os países. Acontece
também com o Nafta e a UE. Mas o Mercosul não pode interpretar,
deforma "light", o que combina, porque corre o risco de quepenetre
nele o vírus da "aladificação": o processo
da Alalc, nos anos 60, deteriorouse no momento em que se começou
a tolerar a violação das regras do jogo. Observase também
uma pequena capacidade para digerir conflitos institucionalmente; os conflitos
comerciais têm alta dramaticidade política, e isto deveria
ser resolvido - sem medos - no Protocolo de Brasília, que para
isso está incluído nos protocolos assinados em Ouro Preto.
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